Entrevista Vandana Shiva e Milton Rondó

Se eles podem sair aos milhões por causa das tarifas dos                                                                                    ônibus, eles não poderiam sair aos bilhões por causa dos                                                                                    preços dos alimentos?

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Entrevista concedida em 8 de Agosto de 2013, no III Encontro Internacional de Agroecologia, ao Paa Africa e Coletivo CARÁ, publicada inicialmente no site http://paa-africa.org/.

Circuitos locais para uma alimentação adequada e redes de sementes na Índia

Entrevistadora: O PAA África está transmitindo ao vivo a partir de hoje o III Encontro Internacional de Agroecologia, na cidade de Botucatu, SP, e para mim é
uma honra ter aqui estas duas pessoas que têm dedicado suas vidas para combater
a fome e mudar a maneira como nós produzimos e consumimos nossa comida.
Ministro Milton Rondo é um velho amigo nosso, Coordenador-Geral de Ações
Internacionais de Combate à Fome do Ministério das Relações Exteriores. E a Dr.
Vandana Shiva não precisa de muitas apresentações.
Bem, a razão para os nossos dois convidados estarem aqui é para discutir circuitos
locais para alimentação adequada. Como vocês sabem o PAA África tem promovido
compras locais de pequenos agricultores para alimentação escolar, com base em
uma política muito bem sucedida desenvolvida no Brasil. E neste 16 de Outubro, a
FAO propõe que falemos de “sistemas alimentares para melhor nutrição”, então há
a necessidade de se repensar a forma como os alimentos são produzidos e como a
produção agrícola pode promover ciclos virtuosos de desenvolvimento, melhorando
a nutrição e aumentando sustentabilidade. Então, Dra. Shiva, se você pudesse
compartilhar um pouco as suas idéias sobre como nós podemos investir nos
circuitos de forma sustentável, e como isso poderia ser incorporada como política
pública em sua opinião.
Vandana Shiva: Eu acredito que a sustentabilidade na agricultura só pode ser
atingida por meio dos circuitos locais de alimentação. Há muitas razões para isso, e
a primeira é que o comércio globalizado em torno da agricultura parou de vender
alimentos, e começou a se concentrar nas mercadorias (commodities). O
pressuposto é que essas commodities vão de alguma forma misteriosa alimentar as
pessoas, mas elas misteriosamente desaparecem dentro dos tanques de carros, e
misteriosamente desaparecem em propriedades mecanizadas. Noventa por cento
das commodities, particularmente milho e soja, não fazem parte do sistema
alimentar, e mesmo se elas tivessem, não valeria a pena comê-las, porque ou elas
estão carregadas de químicos, ou geneticamente modificadas, são nutricionalmente
vazias.

Precisamos pensar em uma agricultura que alimenta as pessoas, que seja
nutricionalmente segura, com o impacto ecológico mais baixo possível. As cadeias
de alimentos de longa distância tem contribuído para as alterações climáticas, mas
elas também são muito vulneráveis….tudo o que você precisa é de um ciclone, e a
oferta de um país inteiro pode ser interrompida. Então as cadeias de longa
distância ao mesmo tempo contribuem para a mudança climática e estão
particularmente vulneráveis a ela. E essas cadeias de longa distância também
causam extremo despedício. Todos os estudos que estão emergindo hoje mostram
que 50% da comida na agricultura industrial é desperdiçada.
No momento em que você muda para circuitos locais de produção, a primeira e
mais importante mudança é: todas as pessoas que comem se tornam conscientes
sobre onde a comida foi cultivada e como a comida foi cultivada. Elas passam a
fazer parte de uma comunidade de alimentação, e passam a apreciar o trabalho dos
agricultores agroecológicos, que produzem comida saudável localmente. Então, ao
invés de um alimento anônimo, você agora sabe de onde vem a sua comida.
Na Índia, com essas cadeias de produção de longa distância, nós acabamos de ter
uma tragédia muito séria, onde 23 crianças morreram por causa de pesticidas na sua refeição do almoço. E isso não teria acontecido se eles soubessem exatamente
de onde os legumes estão vindo, e que não havia uso de pesticidas neles.
Mas cadeias de longa distância também reduzem a nossa cesta de alimentos, de
8500 plantas que a humanidade consumia, para algo em cerca de 8 commodities
negociadas internacionalmente. As crianças que comeram o pesticida na refeição
escolar estavam comendo uma refeição de soja, num país com os mais magníficos
daals (lentilhas), esses grãos que são uma ótima fonte fixadora de nitrogênio e
essenciais para a inclusão de proteína na nossa dieta vegetariana.
Mercadorias negociadas internacionalmente diminuíram a diversidade das nossas
dietas e no processo elas privaram as pessoas da nutrição, e agora, até os pobres
na Índia tem desenvolvido diabetes, porque eles estão sendo alimentados com
arroz branco puro. Sistemas alimentares locais podem atender as necessidades
nutricionais das comunidades locais, eles representariam biodiversidade nas
plantações, e também representariam biodiversidade nos pratos, e toda a ciência
agora nos diz que sem diversidade você não pode ter dietas nutritivas.

Entrevistadora: E quais são os primeiros passos pra fazer essa transição pro local,
do lado dos agricultores? Nós temos tido uma experiência em que encontramos
cenários produtivos muito precários na África, então seria interessante saber como
aprimorar isso.
Vandana Shiva: Todas as intervenções de políticas públicas começam com os mais
vulneráveis, porque se presume que os mais ricos na sociedade podem cuidar de si
mesmos – se eles quiserem orgânicos eles podem simplesmente comprar
orgânicos, se eles querem legumes eles podem comprar legumes. E porque as
políticas públicas começam com os mais vulneráveis, se presume muitas vezes – e
eu acredito ser um pressuposto completamente errado – de que se pode alimentar
os pobres com lixo. Bem, os pobres são feitos da mesma carne e do mesmo sangue
dos ricos. E como seres humanos, eles tem o mesmo direito, a alimentos
saudáveis, seguros e balanceados. Utilizando as intervenções que existem para
levar alimentos às escolas, levar alimentos aos pobres…o que as políticas públicas
precisam planejar e projetar são sistemas alimentares, que depois podem ser
tomados por outros elementos da sociedade ou outras dimensões das políticas
públicas. Tomando a questão de alimentar os pobres, os meus cálculos mostram
que nós na Índia já gastamos 1 trilhão de rúpias (R$37,5 bilhões) para fazer isso
acontecer, mas estamos comprando o pior tipo de comida, comida que apodrece
nos nossos depósitos, importadas com pesticidas e todos os tipos de resíduos. Com
1 trilhão de rúpias, e uma mudança para produção ecológica e compras locais,
faríamos uma revolução. Iria evitar o suicídio dos nossos agricultores, 284 mil
agricultores cometeram suicídio, evitaria a migração rural-urbana, que não é uma
migração impulsionada pela escolha, é uma migração resultante de ser forçado
para fora da terra, diminuiria o desemprego que tem sido gerado uma vez que os
agricultores perdem seu emprego no campo, mas também não encontram nada na
cidade. E terceiro, enfrentaria a crise ecológica muito séria pela qual passamos
hoje, e também enfrentaria a crise nutricional e da fome. Então, não é falta de
dinheiro, ele só está indo para as coisas erradas.
Se somarmos todos os subsídios do mundo, globalmente e nacionalmente, 400
bilhões de dólares dados pelos países da OCDE que estão distorcendo os preços dos
alimentos, fazendo com que seja muito barato para as empresas comprarem dos
agricultores, fazendo dumping com os subsídios, e aí deixando a especulação tirar a
comida das mãos das pessoas, tornando o alimento uma mercadoria. Todas essas
distorções podem ser evitadas pelo simples ato de construir circuitos locais (para a
alimentação) para assegurar que os compromissos da convenção da biodiversidade,
os compromissos em relação ao direito humano à alimentação adequada, todos os compromissos do Zero Hunger Challenge da ONU, todos esses compromissos sejam
respeitados do nível local ao global.

Entrevistadora: Ministro Milton, você pode compartilhar conosco o que, em
termos de política pública, já foi feito e ainda é possível ser feito para atingirmos
este horizonte que a Dra. Shiva descreveu?
Milton Rondó: Como a Vandana colocou, e eu concordo plenamente com você, as
compras locais…talvez seja o melhor projeto que nós desenvolvemos aqui no Brasil
nos últimos 10 anos. Eu acho que é o mais simbólico, porque o que o pequeno
agricultor precisa é de acesso ao mercado, e os mercados no mundo são bastante
distorcidos por subsídios, pelo fato de, como o João Pedro (Stédile, líder do MST)
colocou ontem, apenas cinco empresas compram praticamente todos os grãos
produzidos, um oligopólio. Os preços são distorcidos dentro dos países, por
exemplo, no caso do Brasil, 50% do que os consumidores compram, eles compram
nos supermercados, e como mencionado pelo João Pedro, 3 grandes
supermercados (estrangeiros) detém 77% do segmento. Então você tem um
oligopólio nacionalmente também, o que acaba causando a inflação. E foi
interessante, nós fizemos essa pesquisa para saber em quantos países o preço dos
alimentos está no centro da inflação, e descobrimos que em 90% dos países isso
acontece, mesmo em países que são grandes produtores isso acontece, como
Brasil, Argentina, Rússia, por causa do preço das commodities.

E foi por isso que nós decidimos compartilhar essa experiência com os países
africanos, essa é mesmo a nossa melhor experiência, e como nós falávamos antes,
foi interessante porque no Brasil a nossa experiência de comprar localmente foi
principalmente na direção da alimentação escolar. Então foi parte da nossa
discussão, e hoje aqui no Brasil, como você sabe, 30% dos recursos para
alimentação escolar devem ser destinados a compras exclusivamente da agricultura
familiar. Esse foi um desafio enorme, aprovar isso em lei…e foi interessante que
quando começamos essa cooperação com os países africanos, nós queríamos que
eles decidissem sobre o destino das compras locais dentro do PAA, e
coincidentemente todos eles, países muito distintos, Moçambique, Malaui, Etiópia,
Níger e Senegal, escolheram trabalhar com alimentação escolar. E assim você
ganha três vezes, porque você tem uma condição nutricional melhor para as
crianças, e então elas podem aprender melhor e você ganha se você comprar
localmente, pois ajuda o desenvolvimento das suas famílias e da sua comunidade.
Então, você não está mais vendo as pessoas individualmente, as crianças
individualmente…a criança depende da família e a família depende da comunidade,
e a sua segurança alimentar depende de tudo isso. Todos tem o direito à soberania
alimentar, e nós aprovamos aqui no nosso Plano Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional que o Brasil deve promover em sua política externa a soberania
alimentar em outros países, e isso foi um grande desafio também, mas agora nós
estamos obrigados a isso.
Vandana Shiva: E eu espero que vocês se unam a nós na Índia, porque a) os
movimentos são fortes, b) a Suprema Corte tem tido decisões incríveis e c) nós
temos de fato um sistema eu atingiu uma saturação e que pode agora ir na direção
das compras locais para rejuvenescer a agricultura e a nutrição ou ir na outra
direção, de se tornar um dos maiores mercados para as cinco gigantes. E eles estão
claro, buscando capturar seu mercado, em termos de gastos públicos; eles também
estão olhando para 1.2 bilhões de consumidores, porque bem, se é uma camiseta
de luxo de uma das marcas da moda, ok 1% dos indianos vão comprar, mas
quando você “captura” os alimentos, aí você tem todos os 1.2 bilhões como um
mercado – porque eles todos precisam comer – diretamente, por meio de seu poder
de compra ou indiretamente por meio do governo que intervêm.Os cálculos que fizemos nos últimos 15 anos, da diferença do preço para o
agricultor, que está em queda acentuada e o preço que os consumidores tem pago,
que está disparando, saltou de uma diferença de 6% para uma diferença de 70% a
80%. Então, ambos os camponeses estão perdendo porque eles não conseguem
obter renda suficiente pelo seu trabalho muito pesado para produzir as coisas mais
vitais na economia, que é o alimento e todos estão perdendo, porque a comida está
ficando fora do nosso alcance. E se você extrapolar isso e disser “ok, se essa
tendência continuar…” então você acaba com os agricultores, e vai ter de enfrentar
fome em massa. E será uma crise que nenhum governo poderá superar, então é
melhor intervir com antecedência e corrigir essas distorções e trazer verdade para
o sistema alimentar. O custo verdadeiro do que foi necessário, em termos de danos
ambientais, ou o impacto positivo de contribuições ambientais – que a agroecologia
traz – o verdadeiro custo em termos de saúde, e o custo verdadeiro em termo de
dinheiro público. E de fato, nós recentemente preparamos um relatório sobre saúde
por hectare, por no fim do dia o que nós queremos é produzir alimentos saudáveis,
então, qual sistema produz mais nutrição? E claramente, sistemas agroecológicos
biodiversos, que se são inseridos em esquemas de compras locais, fechariam o ciclo
de forma maravilhosa.
Mas o nosso próximo relatório será sobre a riqueza real por hectare, porque nós
temos maneiras muito falsas de calcular produtividade, eficiência, custos, tudo. É
tudo externalizado, e a sociedade carrega o peso, com água poluída, recursos
hídricos esgotados, veneno na nossa comida, os danos para a saúde, a mudança
climática…e eu acho que nós devemos olhar para o sistema como um todo, e nesse
sistema como um todo, trazer as soluções positivas. Começando com o local, mas
com modelos que possam ser completamente globalizados.
Milton Rondó: E é interessante, como você disse, fiquei muito contente quando
você tocou o tema da compostagem também, porque isso dá uma idéia
holística…nós temos que discutir os solos. Os solos são os principais alimentos, ou
o mínimo necessário para produzir alimentos, e muitas vezes nós não discutimos
isso. Agora a FAO vai ter uma grande discussão sobre solos, e eu acho que é muito
importante que nós mantenhamos essa discussão nos nossos países.
E outra coisa que você disse que foi muito interessante, foi a questão da
fortificação, como as grandes empresas estão trabalhando com fortificação,
tentando capturar o mercado de alimentos. No caso de Moçambique por exemplo,
que eles passaram uma lei pela qual a comida precisa ser fortificada para
alimentação escolar…nós estamos comprando os alimentos aqui no norte do país,
os alimentos vão para o Sul, para Maputo para serem fortificados e depois voltam
para o norte. E o pior, é que você está fortificando esses alimentos com ferro, mas
como você sabe, a anemia falciforme é muito comum na África, como aqui no
Brasil, onde 50% da população é afrodescendente, e nós também estamos
fortificando os alimentos com ferro aqui. Nós sabemos que da população com
anemia falciforme, somente 10% mais ou menos podem ter anemia por falta de
ferro, ou seja, nós estamos jogando nosso dinheiro fora, e ainda causando danos à
saúde dessa população que acaba acumulando um excesso de ferro. Então
precisamos discutir de forma mais abrangente todas essas políticas.

Vandana Shiva: Acima de tudo, eu acho que nós devemos ir além desse
pensamento mecanicista dos sistemas alimentares, que diz por exemplo, que o solo
está morto. A idéia revolucionária dos nossos tempos é a de que os solos vivem. E
para aumentar a vida do solo por meio da compostagem, formando o primeiro ciclo
de nutrientes. O segundo ciclo de nutrientes são as compras locais, produção local,
consumo local, e depois a reciclagem, porque se é local, recolher os resíduos e
transformar em adubo é muito fácil. Mas se você tem fazendas-fábricas gigantes
produzindo resíduos animais tóxicos, e você tenta mandar para algum outro lugar,

ninguém vai aceitar isso. Então, uma produção saudável e solos saudáveis tornam
possível o retorno constante de nutrientes ao solo, para que tenhamos produção de
alimentos permanente, e não exploração da fertilidade do solo visando o curto
prazo, e essa acumulação enorme de resíduos desperdiçados, tanto de alimentos
que não são consumidos pelas pessoas mas também os dejetos, que fazem parte
de todo esse lixo, que por sua vez resulta em emissões de metano, tudo isso
precisa voltar para o solo como nutrientes.

CARÁ: A rede de sementes no Brasil depende muito do
esquema de trocas para sobreviver. Há por exemplo uma série de espécies nativas
que se perderam no território nacional, mas que não se perderam na rede
internacional. A minha pergunta é: como nós podemos manter essas redes vivas,
com trocas ativas sem deixar que o fluxo genético e esse patrimônio genético
também alimentem a biopirataria? Como vocês lidam com isso na Índia?

Vandana Shiva: Bom, é claro que a Índia é um continente em si mesmo, tanto no
tamanho do território, da diversidade e do número de pessoas. Então o trabalho da
Navdanya com sementes tem se focado muito na Índia mesmo. A questão de
reabastecer a oferta de sementes, por causa dos efeitos da erosão causados pela
expansão de enormes monoculturas é um desafio que precisa ser superado.

 Mas é necessário que dois problemas sejam evitados: o primeiro é que essas trocas não levem a biopirataria. E isso significa que as trocas precisam ser muito mais pessoa-
pessoa. E entre pessoas é muito mais fácil assinar um acordo “nós recebemos
essas sementes de uma comunidade para a qual elas pertencem como bens
comuns, e eles estão compartilhando-as conosco como bens comuns e eu me
comprometo a não tomar a patente disso ou alegar a sua propriedade intelectual
em meu nome e nem permitir que outra pessoa faça isso”. Então esses são os tipos
de compromissos que nós já fazemos no nível da comunidade na Índia, em que
cada seed saver (um poupador de sementes) assuma o compromisso ao recebê-las
de conservá-las, pra que eu possa guardá-las para o futuro, mas também trocá-las
com qualquer pessoa que necessite, sem qualquer risco de privatização e
monopólios privados.
O segundo é claro relativo ao fato de que porque tivemos um grande grau de
transmissão de doenças por conta de sementes inadequadas, as sementes nativas
estão se movendo…nós temos agora sementes de milheto da África, o milho do
México. Séculos atrás, nenhuma epidemia, nenhuma doença por fungos, nada.
Porque todas essas transferências ocorriam numa escala pequena, de teste. E as
sementes eram saudáveis, resistentes a doenças, não desencadeavam doenças.
Mas há muitas sementes novas, que se tornaram transmissoras de doenças. E por
isso nós precisamos ter um controle muito mais democrático, não apenas
burocrático, dos sistemas de segurança, das medidas fitossanitárias, o que
basicamente significa que a comunidade precisa se envolver, que eles vão plantar
as sementes numa escala pequena por um ano ou dois para se assegurar de que
não haverá transmissão de doenças e então compartilhá-la numa escala maior.
Tudo isso deveria ser passível de ser feito. E eu acho que o fator principal
atualmente é que as corporações decidem; elas decidiram nos anos 70, elas
escreveram as leis nos anos 80, impostas em 1995 no acordo TRIPS da OMC, e a
Monsanto veio a público em 1995 dizendo “nós conseguimos algo sem precedentes,
nós escrevemos uma lei e conseguimos que os governos a aceitassem, através de
nossos governos” – que no caso deles foi o governo do Estados Unidos. Então eles
foram o paciente e o médico ao mesmo tempo. Eles foram o paciente porque os
agricultores estavam acumulando e guardando sementes – oh, a pobre Monsanto
estava sofrendo porque os agricultores estavam guardando sementes. Então a
solução que eles deram para eles mesmos foi tratar a poupança de sementes e as trocas de sementes como um crime de propriedade intelectual.A razão pela qual desde 1987  até hoje eu continuo a resistir ao patenteamento de sementes é primeiro a questão ética: você não cria a vida, você não tem posse dela; a razão científica: mover um gene não é criar uma vida, assim como eu trazer uma cadeira para essa sala não me torna arquiteta desse convento, ou a dona – as freiras me expulsariam de eu dissesse “pague-me um aluguel, porque eu trouxe uma cadeira para o seu convento!”, e mesmo assim, a Monsanto não está sendo expulsa, nem pelos agricultores nem pelos governos, quando vem e diz “eu trouxe um gene de toxina, e ao invés de me punir por poluição vocês deveriam me recompensar por ser o criador da vida”.
Eu estou muito orgulhosa pela Índia ter
acabado de rejeitar isso, as alegações de patente da Monsanto, em todas as
culturas resistentes ao clima. A alegação de patentes mais abrangente que já
existiu, e as nossas cortes decidiram “nos desculpe, vocês só moveram um gene, a
planta fez o resto, e é um processo biológico, e a nossa lei não permite o
patenteamento dos processos biológicos, Artigo 3J”. Mas eles também disseram
que o gene que foi utilizado, para resistência ao frio, já havia sido descoberto faz
tempo, vocês estão fazendo apenas um uso novo de uma substância já conhecida.
E eu acredito que esses são aspectos que nós precisamos fortalecer para a
soberania alimentar, por muito tempo, os movimentos por soberania alimentar tem
deixado passar o fato de que, se você não tem soberania com as sementes, lá onde
o cultivo começa, então como você poderia ter soberania alimentar? Se você não
pode decidir por cultivar a biodiversidade que você deseja para si, para a nutrição
adequada dos seus filhos, e tudo o que você pode cultivar é soja, então onde está a
soberania alimentar? Então a soberania alimentar tem de ser o começo, e deve
haver uma revisão obrigatória do patenteamento das sementes, artigo 27.3 B da
OMC. E eu acredito que essa revisão precisa ser levada a cabo novamente, nunca
foi permitido que ela fosse terminada, mas esses eram tempos diferentes, quando
os EUA eram uma potência super poderosa. O nosso governo acabou de dizer a eles
quando eles disseram, “mudem suas leis! Fortaleçam sua propriedade intelectual” e
eu estou muito contente que o nosso governo acabou de responder ao Vice-
Presidente dos EUA que está agora visitando a Índia “vocês precisam fortalecer as
SUAS leis, pra evitar patentes fraudulentas ou “evergreening”(processo pelo qual
detentores de patentes utilizam estratégias para reter patentes que estão próximas
de expirar)”, porque essas não são leis fortes, são leis fracas, que permitem que
iniciativas que não são inovadoras se passem por novidade. Então há muitos
desafios, e há campanha global de liberdade de sementes que nós iniciamos e
temos catalisado, é um lugar onde tantas dessas questões precisam ser
respondidas. No contexto atual, onde além de patenteamento, estão aprovado o
registro obrigatório de sementes, fazendo da uniformidade e da vulnerabilidade
uma virtude, e fazendo da diversidade um crime. É um pouco como essa tola lei da
fortificação, que se torna uma lei ineficiente, nós temos que redefinir o que é a
criação, nós temos redefinir o que é comida, nós temos que redefinir o que é
nutrição, e há ciência suficiente para isso…nós precisamos permitir que a ciência
alternativa, que a ciência ecológica, entre nessa discussão, no lugar da ciência
“fabricada”, que eu chamo ciência de relações públicas., que é muito mais
propaganda para as corporações do que informação real sobre como o mundo
funciona, sobre como o sistema alimentar funciona, sobre como sistemas
igualitários funcionam, e sobre como nossos corpos e nossa saúde funcionam.
Milton Rondó: É muito interessante que você tenha tocado o assunto das
sementes, porque no PAA África, o Senegal nos solicitou cooperação para
sementes, exatamente para se tornar auto-suficiente. E é interessante porque nós
identificamos, nós temos um projeto no Haiti que foi muito bem-sucedido e
permitiu aos pequenos produtores reproduzir as sementes, o que se torna uma
atividade econômica para eles, e agora, o Haiti vai fornecer cooperação –
financiada pelo Brasil – ao Senegal, para que eles desenvolvam seu próprio projeto

de desenvolvimento de sementes. E nós percebemos que Moçambique por exemplo, que está numa encruzilhada do mundo, com uma biodiversidade enorme,

eles estão importando as suas sementes, o que é uma loucura. Você está
absolutamente certa, e nós queremos fortalecer esse lado do PAA África, para
ajudar os países a se tornarem auto-suficiente na produção de sementes, e de
sementes crioulas.
CARÁ: Nós temos mais uma questão, e é sobre tempo. O
Stédile falou ontem sobre como o mercado está determinando o tempo dos
agricultores, e como o mercado é importante para os agricultores, especialmente
no agronegócio. E nós queríamos perguntar: mas e o tempo para os pequenos
agricultores, porque se eles estão sendo escravizados por esses mercados, como
eles podem lidar com acompanhar o momento? Alguns alimentos, que são mais
nutritivos que outros inclusive, levam mais tempo para crescer. Então como eles
podem lidar com esse tempo que o mercado demanda, muitas vezes muito rápido,
mas considerando que as plantas não crescem dessa forma?
É uma questão sobre autonomia.
Vandana Shiva: A civilização industrial tem privilegiado a rapidez, então extraia o
combustível fóssil, coloque o carvão, coloque tudo isso na industria têxtil, e pronto,
produza toneladas de roupas de má-qualidade e despeje-as no resto do mundo. E a
mesma lógica está agora sendo aplicada aos alimentos, seja na rapidez da
produção, e a redução dos ciclos, seja no processamento – os melhores alimentos
levam tempo para serem processados; um bom queijo não pode ser feito
instantaneamente, e o macarrão instantâneo para é um insulto às dietas humanas.
Como você pode ter um macarrão de 2 minutos? Você precisa contar o tempo que
foi investido, pelo agricultor que cultivou aquela plantação, todos os séculos que
levaram para aquela semente se desenvolver. Mas há também essa pressão de
rapidez criada por causa do desperdício. Eu ouvi uma vez – havia essa reunião do
Banco Mundial em Délhi e em todos os lugares havia pessoas que estavam lá para
essa reunião – alguns oficiais do Banco Mundial comentavam, que quando o
WalMart adquire comida, como de uma padaria por exemplo, que essa padaria
precisa estocar todo tipo de pão até às 17h, mas eles só vão realmente utilizar
cerca de 5% daquilo, o que significa que 95% será jogado fora. E essa companhia
estava agora recebendo um prêmio porque eles estavam usando pão como
combustível – queimando pão enquanto 1 bilhão de pessoas morrem de fome.
Como isso pode ser recompensado como um uso eficiente dos alimentos?
A razão pela qual existe agora um movimento Slow Food, e eu sou vice-presidente
no nível internacional, é porque isso (a situação exemplificada pelo caso do
WalMart) privilegia o subsídio da rapidez e do rápido. Nós precisamos refletir sobre
o tempo ecológico do agricultor, que precisa trabalhar em um ritmo próprio. Todas
as celebrações para a terra devem ser consideradas como parte desse tempo para
o agricultor, para a comunidade, é assim que a cultura é criada. E esse trabalho de
linha de montagem que só privilegia o tempo, é uma desumanização, porque
transforma os trabalhadores, inclusive os agricultores, em partes de uma linha de
montagem, o que é ótimo para a eficiência industrial, mas é altamente ineficiente
do ponto de vista ecológico e humano. Para permitir que o agricultor viva uma vida
plena, no ritmo que permita que essa vida plena aconteça. Então nós temos que
reivindicar e recuperar o tempo como um bem comum, da mesma forma nós
precisamos reivindicar e recuperar o conhecimento como um bem comum, e
reivindicar as sementes como um bem comum.
Entrevistadora: Bem, para encerrar, um pouco mais no lado pessoal, vocês dois
estão ambos envolvidos há um bom tempo na luta pela segurança alimentar e soberania alimentar em todo o mundo. Qual seria a sua mensagem para as pessoas que estão começando agora a lutar nessas frentes, como esses jovens que aqui se encontram?

Milton Rondó: Bom, é um prazer estar aqui com a Vandana. Eu me lembro
quando nos conhecemos pela primeira vez no Rio Grande do Sul, eu trabalhava no
governo do Rio Grande do Sul, e eu estava como tradutor para o Vice-Governador,
e foi muito interessante porque quando ela estava descrevendo o que a Monsanto
tinha feito na Índia, que foi exatamente o que eles fizeram aqui com o CTNBio,
transformando um órgão consultivo em deliberativo, eu fiquei tão emocionado que
parei de traduzir. Eu me lembro todo mundo me olhando, e eu me lembrei que
estava lá para traduzir e não para fazer julgamentos. Então, eu acredito que nós
temos muito a aprender com a Índia, e eu espero que nós tenhamos sempre a
cooperação da Vandana pra fazer com que esse mundo se torne soberano em
alimentação.
Vandana Shiva: Nos 40 anos que eu venho trabalhando em questões da
agroecologia, quando eu comecei, eu era uma voz absolutamente isolada, dizendo
que os pequenos agricultores eram mais produtivos, que as monoculturas não eram
produtivas, que nós não precisamos de químicos na agricultura. Hoje, há um
movimento tão grande, e os jovens, querendo se unir ao movimento da
agroecologia e soberania alimentar mostra duas coisas: um, que eles não estão
sendo convencidos pela propaganda de que a agricultura industrial é a única capaz
de alimentar o mundo e de que nós devemos entregar as nossas vidas para as
grandes corporações, mas também que eles se importam com a origem da sua
comida e que eles se importam com o futuro do planeta, e isso é o que os motiva,
porque a agroecologia une a Terra, como a teia ecológica da vida com os humanos,
tanto como produtores quanto como consumidores de alimentos. É o lugar onde
nós temos o relacionamento mais íntimo com a Terra e nós podemos redefinir esse
relacionamento. E o pensamento radical que tem crescido que de repente as
pessoas dizem por todo o mundo “mãe Terra”, virou um vocabulário comum. Há
alguns anos todos diziam que a Terra não era um ser, só matéria morta, e eu acho
que a coisa mais positiva que eu vejo é: quanto mais a ciência nos diz como as
coisas funcionam nós percebemos que a agroecologia funciona mais eficientemente
que a agricultura industrial, que sementes cultivadas ecologicamente funcionam
melhor que OMGs, e isso no nível científico mais alto, mas até a democracia
funciona melhor com soberania alimentar e a agroecologia; do contrário, nós
estaremos a beira de uma ditadura por meio dos alimentos – como Henry Kissinger
disse, os alimentos são uma arma. E podem ser utilizados para dizimar
ecossistemas e populações, e na minha opinião todas as espécies, todos os seres
humanos e todas as crianças tem o direito a um futuro saudável, e o nosso papel é
garantir isso. E está tão claro que há duas coisas que agora aparecem como
altamente ineficientes nos sistemas de agricultura: o primeiro são os subsídios, que
são o nosso dinheiro, o dinheiro dos contribuintes e o segundo é o conhecimento
manipulado. Então, quanto mais os jovens puderem criar conhecimento
independente, se informem mais, então mais democraticamente ativos eles se
tornarão. Se eles podem sair aos milhões por causa das tarifas dos ônibus, eles não
poderiam sair aos bilhões por causa dos preços dos alimentos?